Então, aconteceu assim de repente. E mesmo que Murilo pudesse prever algo parecido, não tinha como se preparar. Algo que ele nem se lembrava mais. Algo bobo e infantil que aconteceu quando ele também era bobo e infantil, já que tinha apenas 13 anos.
A lembrança veio aos poucos. Fragmentos daquele dia.
Um dia que andava sem rumo pela casa, entediado. Primeiro dia de férias da escola e estava preso dentro de casa por causa da chuva. Que grande Injustiça! Principalmente quando se é criança… Na quarta vez que passou pelo corredor, viu a porta do escritório do pai entreaberta. Na verdade, era uma saleta que seu pai chamava de escritório e onde havia montado uma pequena biblioteca, onde ouvia música, lia, escrevia ou trabalhava sempre que estava em casa. Achou estranho, pois só estavam ele e a mãe na casa e seu pai sempre reclamava quando alguém esquecia a porta aberta. Não tinha chave, mas devia ficar sempre fechada. “E nada de bagunça!”.
Não tendo muito que fazer, resolveu bisbilhotar. Havia papéis com anotações espalhados sobre a mesa. A letra do pai era bonita. Tanto que ele passaria um bom tempo treinando, até ficar parecida. Dois livros abertos, algo relacionado a Leis, Direitos. Nada de interessante. Na estante existia uma quantidade razoável de livros. Conhecia todos. Bom, pelo menos as capas. E uma de tom verde num canto à direita chamou sua atenção. Não lembrava dele. E não teria como passar despercebido um livro com a capa verde. Parecia uma espécie de manual com exercícios para desenvolver a percepção, consciência, inconsciência. Esse tipo de coisa que esses tipos de livros têm. Estranhou aquilo, pois apesar de ser criança, já entendia as idéias do pai. Racional e cético. Não imaginava o pai com um livro desse tipo. Passou as folhas e leu alguns trechos de forma aleatória. A poltrona do pai, no canto do escritório, pareceu convidativa. Sua mãe preparava um bolo para o lanche da tarde. Não tendo nada mais interessante pra fazer, abriu uma bandeirola da janela, fazendo entrar um pouco mais de claridade e se instalou na poltrona. Abriu o livro e pelos títulos do índice ia lendo o que achava interessante. O primeiro e o segundo, achou as coisas mais malucas que já havia lido. Continuou. Passou por mais dois e agora no terceiro, percebeu que estava lendo e praticando. E aquilo fluía com uma naturalidade desconhecida pra ele. Aconteceu o mesmo com os dois seguintes. Mesmo pensando que pudesse ser algum tipo bruxaria ou hipnose, ficou curioso, pois percebeu que o que acontecia, era parecido com o que estava descrito no livro. Começou outro que dizia poder revelar o rosto da alma gêmea. Aquilo chamou sua atenção porque já começava a olhar as garotas com outros olhos. Acreditava até que já tinha se apaixonado duas vezes. E embora não entendesse muito do assunto, já tinha escutado algumas garotas falando de amor, paixão, alma gêmea. O tipo de conversa que as meninas têm.
Não tendo muito que fazer, resolveu bisbilhotar. Havia papéis com anotações espalhados sobre a mesa. A letra do pai era bonita. Tanto que ele passaria um bom tempo treinando, até ficar parecida. Dois livros abertos, algo relacionado a Leis, Direitos. Nada de interessante. Na estante existia uma quantidade razoável de livros. Conhecia todos. Bom, pelo menos as capas. E uma de tom verde num canto à direita chamou sua atenção. Não lembrava dele. E não teria como passar despercebido um livro com a capa verde. Parecia uma espécie de manual com exercícios para desenvolver a percepção, consciência, inconsciência. Esse tipo de coisa que esses tipos de livros têm. Estranhou aquilo, pois apesar de ser criança, já entendia as idéias do pai. Racional e cético. Não imaginava o pai com um livro desse tipo. Passou as folhas e leu alguns trechos de forma aleatória. A poltrona do pai, no canto do escritório, pareceu convidativa. Sua mãe preparava um bolo para o lanche da tarde. Não tendo nada mais interessante pra fazer, abriu uma bandeirola da janela, fazendo entrar um pouco mais de claridade e se instalou na poltrona. Abriu o livro e pelos títulos do índice ia lendo o que achava interessante. O primeiro e o segundo, achou as coisas mais malucas que já havia lido. Continuou. Passou por mais dois e agora no terceiro, percebeu que estava lendo e praticando. E aquilo fluía com uma naturalidade desconhecida pra ele. Aconteceu o mesmo com os dois seguintes. Mesmo pensando que pudesse ser algum tipo bruxaria ou hipnose, ficou curioso, pois percebeu que o que acontecia, era parecido com o que estava descrito no livro. Começou outro que dizia poder revelar o rosto da alma gêmea. Aquilo chamou sua atenção porque já começava a olhar as garotas com outros olhos. Acreditava até que já tinha se apaixonado duas vezes. E embora não entendesse muito do assunto, já tinha escutado algumas garotas falando de amor, paixão, alma gêmea. O tipo de conversa que as meninas têm.
Subitamente, ele não sabe onde está Sente a cabeça leve e tonta. O dia claro, o sol alto e quente. A forma como acontece, lembra aquelas cenas de filme onde a câmera passeia pelo cenário rapidamente, como os olhos de um pássaro voando baixo na direção do que parece ser… uma casa toda de madeira, com uma varanda que percorre a frente e a lateral. Na frente, uma escada com quatro degraus e alguém sentado, abraçando os joelhos com a cabeça enfiada entre os braços. Quando chega bem perto, o “passeio” termina numa freada brusca no momento que a garota ergue a cabeça e o olha nos olhos. A pele num tom moreno estonteante. Doce. Os olhos amendoados são tão negros quanto os cabelos longos e cacheados. A boca carnuda se move e ela diz algo que ele não consegue ouvir ou entender. Mas pôde sentir o hálito. Doce.
E tudo somiu tão rápido quanto veio. Murilo olha em volta, atordoado e vê que ainda está no escritório do pai. Sente uma estranha sensação de formigamento pelo corpo todo. As mãos estão trêmulas quando pega o livro caído no chão. Coloca de volta na estante e sai sem entender direito o que tinha acontecido.
A paisagem, o rosto e a quase certeza de saber, mas não ter entendido o que ela disse, ficariam em sua cabeça durante um bom tempo. Ainda assustado pelo que viu e sentiu, ficou quase uma semana sem conseguir entrar no escritório. Quando lembrou que não tinha visto o nome do livro ou de seu autor, a “prova do crime” não estava mais lá. Não teve coragem de perguntar ao pai e nem de comentar com ninguém. Aquilo foi tão real quanto absurdo. E como sempre acontece, o tempo passou e tudo foi sossegando nos cantos de sua mente, até cair no esquecimento.
A paisagem, o rosto e a quase certeza de saber, mas não ter entendido o que ela disse, ficariam em sua cabeça durante um bom tempo. Ainda assustado pelo que viu e sentiu, ficou quase uma semana sem conseguir entrar no escritório. Quando lembrou que não tinha visto o nome do livro ou de seu autor, a “prova do crime” não estava mais lá. Não teve coragem de perguntar ao pai e nem de comentar com ninguém. Aquilo foi tão real quanto absurdo. E como sempre acontece, o tempo passou e tudo foi sossegando nos cantos de sua mente, até cair no esquecimento.
Murilo estava distraído, lendo uma revista quando ela passou no corredor e seu perfume invadiu as narinas e sua memória. Algo acendeu e pulsou dentro de sua cabeça. Paralisado e tentando lembrar ou identificar o que era, levantou a revista até a altura dos olhos e a encontrou encostada na parede, próxima a uma das portas do vagão, indicando que saltaria na estação seguinte. Distraída, a garota olhava os sapatos e pensava que precisaria de mais um par até o fim das aulas quando sentiu que alguém a olhava. Ergueu a cabeça, com a curiosidade automática de ver quem seria e encontrou os olhos de Murilo com uma expressão alucinada e estranha. Ela se sentiu embaraçada e aliviada quando as portas se abriram e saltou do vagão. E, então aconteceu assim, de repente. E mesmo que Murilo desconfiasse que pudesse realmente acontecer, não tinha como se preparar para algo assim. Algo que nem se lembrava mais. Algo bobo e infantil que aconteceu quando ele era bobo e infantil, afinal tinha apenas 13 anos.
O cheiro ativou sua memória, mas quando a garota com uniforme de colegial ergueu a cabeça e o olhou, a lembrança daquela tarde invadiu sua mente com velocidade e força tamanha que ele chegou a sentir dificuldade em respirar, as mãos tremiam e o tempo pareceu parar. Só voltando ao normal quando as portas do metrô se fecharam. Pelo vidro da janela, ele viu a garota indo para a saída do metrô. Só percebeu que havia se levantado quando as pernas fraquejaram. Buscou apoio no encosto do assento e deixou o corpo desabar. Algumas pessoas olhavam de modo estranho, mas ele estava alheio a isso. Quase passou da estação seguinte, onde sempre desce. Seguiu para a saída da estação de Botafogo e foi andando pra casa. A cabeça não parava um minuto. As idéias se misturavam em trechos desordenados. Se sentia mais calmo, mas o coração ainda estava um tanto acelerado. Rever aquele rosto 20 anos depois e constatar que existia de verdade era algo assustador.
“Meu Deus ela existe de verdade existe mesmo e esteve na minha frente e eu não fiz nada e provavelmente nunca mais vou vê-la”.
Ele passou a semana andando de metrô entre as seis e sete da noite. Indo e vindo. “Mas enquanto estou voltando de Copacabana, ela pode estar vindo do Centro. E o contrário também. Pelo uniforme, dá pra saber que é normalista. Mas de qual colégio? Será que mora no Flamengo ou estava só de passagem? O quê diabos significa isso tudo?”.
Tentou controlar a situação o máximo que pôde. O rendimento no trabalho caiu um pouco. Achou extremamente oportuno que Carla estivesse viajando. Esperava ter esclarecido aquilo até o final do mês, quando ela chegasse, pois com certeza perceberia logo que tinha algo errado. O problema é que ele não sabia como resolver aquilo. Ele não sabia nem o quê era aquilo…
Numa quinta-feira fria, falou com Pedro, um de seus chefes na agência, que precisava resolver algumas coisas e pediu o dia livre. Chegou às oito e saiu às nove. A chuva fina ajudava o inverno a deixar a cidade fria e melancólica. Caminhou sem rumo pelas ruas do Centro e quando viu, estava em frente à Biblioteca Nacional. Gostava de lá. E era disso que precisava: a calma e o silêncio do lugar. Foi até a primeira mesa que vazia que viu, tirou algumas folhas e lápis da pasta que carregava. Não pretendia escrever ou desenhar nada, mas era bom pra passar o tempo e ajudava a disfarçar se começasse a olhar pro nada e falar sozinho. Você achar que está ficando doido é uma coisa. Complicado é quando os outros também começam a achar. Sabia que aquilo não podia virar obsessão. Mas não conseguia parar de pensar.
O cheiro ativou sua memória, mas quando a garota com uniforme de colegial ergueu a cabeça e o olhou, a lembrança daquela tarde invadiu sua mente com velocidade e força tamanha que ele chegou a sentir dificuldade em respirar, as mãos tremiam e o tempo pareceu parar. Só voltando ao normal quando as portas do metrô se fecharam. Pelo vidro da janela, ele viu a garota indo para a saída do metrô. Só percebeu que havia se levantado quando as pernas fraquejaram. Buscou apoio no encosto do assento e deixou o corpo desabar. Algumas pessoas olhavam de modo estranho, mas ele estava alheio a isso. Quase passou da estação seguinte, onde sempre desce. Seguiu para a saída da estação de Botafogo e foi andando pra casa. A cabeça não parava um minuto. As idéias se misturavam em trechos desordenados. Se sentia mais calmo, mas o coração ainda estava um tanto acelerado. Rever aquele rosto 20 anos depois e constatar que existia de verdade era algo assustador.
“Meu Deus ela existe de verdade existe mesmo e esteve na minha frente e eu não fiz nada e provavelmente nunca mais vou vê-la”.
Ele passou a semana andando de metrô entre as seis e sete da noite. Indo e vindo. “Mas enquanto estou voltando de Copacabana, ela pode estar vindo do Centro. E o contrário também. Pelo uniforme, dá pra saber que é normalista. Mas de qual colégio? Será que mora no Flamengo ou estava só de passagem? O quê diabos significa isso tudo?”.
Tentou controlar a situação o máximo que pôde. O rendimento no trabalho caiu um pouco. Achou extremamente oportuno que Carla estivesse viajando. Esperava ter esclarecido aquilo até o final do mês, quando ela chegasse, pois com certeza perceberia logo que tinha algo errado. O problema é que ele não sabia como resolver aquilo. Ele não sabia nem o quê era aquilo…
Numa quinta-feira fria, falou com Pedro, um de seus chefes na agência, que precisava resolver algumas coisas e pediu o dia livre. Chegou às oito e saiu às nove. A chuva fina ajudava o inverno a deixar a cidade fria e melancólica. Caminhou sem rumo pelas ruas do Centro e quando viu, estava em frente à Biblioteca Nacional. Gostava de lá. E era disso que precisava: a calma e o silêncio do lugar. Foi até a primeira mesa que vazia que viu, tirou algumas folhas e lápis da pasta que carregava. Não pretendia escrever ou desenhar nada, mas era bom pra passar o tempo e ajudava a disfarçar se começasse a olhar pro nada e falar sozinho. Você achar que está ficando doido é uma coisa. Complicado é quando os outros também começam a achar. Sabia que aquilo não podia virar obsessão. Mas não conseguia parar de pensar.
Sentiu um estranho calor na nuca e então, aquele perfume novamente. Murilo pensou que a loucura havia chegado e acabava de se instalar e achou que ía começar a sentir e ver coisas. A boca seca e o coração alucinado fizeram com que ele olhasse em volta. Ali! A garota numa mesa ao próxima a sua, olhando pra ele até o momento que seus olhos se encontraram e ela baixou os dela rapidamente, voltando pro livro e o caderno abertos à sua frente. Ele guardou tudo na pasta, tentou se controlar e foi até ela:
– Michelle!
Ela parou de escrever e ergueu os olhos, curiosa.
– Oi?
– Seu nome é Michelle, não é?
– É, mas eu não lembro de te conhecer.
– Provavelmente não, mas eu te conheço há vinte anos.
– ???
– Nossa, vai ser mais difícil do que eu pensei. Não sei nem por onde começar.
– Que tal mostrando a carteirinha de maluco?. Eu tenho dezessete anos.
– Olha, pode parecer absurdo… Na verdade, é absurdo, mas eu preciso que você escute essa história,
por mais doida que ela possa parecer.
– Mas primeiro me diga porquê que eu tenho que ouvir essa tal história e… Caramba! Você é o cara do metrô que ficou me olhando esquisito!
Murilo se perdeu um pouco, procurando entender do que ela estava falando e quando viu, pensou em como sua cara deve ter parecido estranha.
– É, eu devia estar com cara de idiota. Mas foi o choque de te reconhecer. É por isso que eu tenho que te contar. Você faz parte dela. E me desculpe se te assustei.
– Tudo bem. Eu escuto bobagem toda hora por causa do uniforme. Já nem sinto tanta raiva desses doentes que ficam babando quando a gente passa…
– Mas eu não sou um desses babões. Talvez, daqui a uns vinte ou trinta anos?!
Murilo só reparou que ela estava com a roupa daquele dia, quando ela falou.
– Foi a primeira coisa que eu pensei. Mas, o estranho foi que tive a sensação de te conhecer e saber que não era isso – ela sentiu um arrepio na nuca – e mais estranho ainda é que essa impressão continua, mesmo nem sabendo o seu nome.
– Murilo – ele inclina um pouco o corpo sobre a mesa que os separa, estendendo a mão pra ela. Os dois acham o toque agradável.
- E agora que conseguiu me deixar curiosa, me diga o quê é que está acontecendo.
- Tá, mas acho que seria melhor em outro lugar ou vão acabar nos expulsando daqui. Você gosta de café?
Michelle pensa um pouco, fecha o livro e o caderno e diz:
- É, um café cai bem. E num lugar público não tem perigo do seu lado babão se manifestar.
Os dois começam a rir e ouvem o tradicional “shiiiii” pedindo silêncio. Saem pra rua e a chuva havia parado, mas as ruas estão tranquilas por causa do frio. Michelle desvia das poças na calçada e Murilo não desvia os olhos do rosto dela. Murilo tinha um sorriso bobo no rosto, sentindo um misto de euforia, agitação e alegria que não lembrava como era, há muito tempo. Michelle estava séria e curiosa pra saber o que aquele estranho teria de tão interessante pra falar, pois aquela sensação do metrô persistia e mesmo sem saber o que era, sabia que era algo sério. Ao menos pra ele.
– Você não é daqui do Rio, é? – ele perguntou.
– Não. Sou de Goiás.
– Nossa. Um bocado longe.
– É, um pouco.
– É aqui – a mão de Murilo toca levemente nas costas dela, puxando-a para seu lado.
Ele se adianta, abre a porta para ela e entram no que parecia um bistrô. O lugar é elegante e aconchegante. Apenas um sujeito distraído com um jornal, ocupa uma das pequenas mesas. Eles seguem até o fundo e Murilo puxa a cadeira para Michelle sentar. Um garçon se aproxima, lhes entrega o cardápio enquanto deseja um bom dia e se afasta. Michelle olha a decoração em volta e diz:
– Bem bacana isso aqui.
– É, eu gosto. O quê você sugere?
Ela pega o cardápio e não se demora olhando a lista.
–Vou querer Alpino, e você… Tem cara de gostar do tradicional: Expresso – ele confirma com a cabeça e um sorriso – mas eu sugiro o Cappucino Taça.
Ela gosta do ar de surpresa e satisfação no rosto dele, que chama o garçon e faz o pedido.
– Então, por que não começa? – com os cotovelos na mesa, Michelle cruza os dedos das mãos e apóia o queixo.
– O problema é que não sei por onde. É difícil acreditar que você esteja aqui na minha frente.
– Ok, vou tentar facilitar. Você mora aonde?
Em Botafogo. E você, é no Flamengo?
– É. E faz o quê da vida?
– Trabalho com publicidade. E você, vai ser professora?
– Espero que sim.
O garçon chega com uma enorme bandeja e coloca as xícaras fumegantes em frente aos dois. Ela sopra um pouco antes do primeiro gole. Murilo parece mais relaxado quando ela diz:
– Bom, que tal acabar com esse mistério e me dizer o que está acontecendo?
– Então aconteceu assim, de repente…
E não demorou mais que meia hora. Murilo estava elétrico. Contou todo a história, algumas lembranças da adolescência, o dia no metrô e os seguintes, até o primeiro e o segundo e atual encontro na Biblioteca. Em nenhum momento ela o interrompeu. Em algumas partes, ela notou os olhos dele brilhar. Em algumas partes, sentiu o brilho do seu apagar. Principalmente, nas vezes em que um calafrio arrepiou seus braços e a nuca. E nas que ficou com a respiração suspensa, quase esquecendo de voltar a respirar.
– E então, isso não é muito mais doido do que qualquer coisa que você tenha pensado?
O olhar dela está distante. Ele nota, mas não sabe o que é. Ou prefere não saber.
– De longe, é a mais incrível que já me contaram. Nem tive tempo de pensar em muita coisa. E agora, até pensar está difícil. Acho que você devia aproveitar isso num livro ou filme. Até acredito que você sonhou ou viu isso tudo, mas eu não sei nem o quê dizer.
– Nunca acreditei nessa coisa de alma gêmea. Mas era o que dizia no livro. A primeira vez que te vi foi tão real quanto agora. E já tinha até me esquecido disso tudo até você aparecer de repente e o podia ser só um sonho antigo virou uma grande confusão na minha cabeça.
– Bem legal da sua parte vir confundir a minha também.
– Não foi intencional, mas eu tinha que te contar. Tem muito mais coisa além de tudo isso. Eu tenho namorada e gosto muito dela. Sorte que ela está viajando e só chega no fim do mês. E não dá pra falar algo assim por telefone, mas na verdade, acho que não vou falar nada. E você, tem namorado?
Meu Deus, você pode até ser casada?!
– Sim. Não! Não sou casada. Ainda. Tenho namorando e me caso em dezembro – ela ergue a mão direita e ele compreende que o que já tinha visto, não era um simples anel com um brilhante – e eu amo o André. E já está tudo pronto, até o vestido. Afinal é daqui a cinco meses…
O silêncio em que ficam é quase constrangedor.
– Provavelmente, não vou ser nem convidado, né?
– Seria esquisito te ver na igreja. E seria muito masoquismo ir ao casamento de alguém que você pensa ser sua alma gêmea. Acredita mesmo nisso?
– Não acreditava até você aparecer na minha frente. Não tem como saber se vou gostar de você por causa de uma experiência num livro, mas como definir a idéia de ter antes mesmo que você tivesse nascido? O seu rosto e seu cheiro ficaram gravados na minha memória. Tem falhas como o metrô, que não tem nada a ver com aquele descampado e o cabelo também é diferente, mas tem esse perfume… Mesmo que passe vinte, trinta anos, não vou esquecer nunca.
– É, ainda tem essa coisa de cheiro – ela ergue o braço, aproxima o nariz da axila e fala num tom de deboche – não acredito que seja falta de banho…
Murilo acha graça mas logo em seguida fica sério.
– Mesmo num labirinto com os olhos vendados, eu acharia você.
– Você me assusta com isso, sabia?
– E como você acha que eu estou? Pode ser que eu esteja me precipitando. Seria muito mais fácil me aproximar como um caça-modelos por exemplo, e te dar um cartão da agência, afinal você é linda e não seria nada absurdo. Mas você conseguiria pensar em algo assim, se tivesse acontecido contigo?
– Acho que não. Mas Murilo, eu tenho sonhos e projetos que não podem ser abandonados assim, de uma hora pra outra. Você também já deve ter os seus. Já disse que acredito na sua história, mas a questão é essa: É sua história. Se você não tem como saber se pode vir a gostar de mim, imagine eu que não passei por isso.
Ele paga os cafés e saem pra rua. Ficam parados embaixo da marquise, se protegendo da chuva fina que havia voltado.
– Então é isso! A gente se vê de novo?
– Você parece ser um cara bacana, mas depois de tudo você tentaria ser apenas um bom amigo?
– É, seria mesmo difícil.
– Desculpa, mas eu tenho que ir. Perdi completamente a noção da hora. Espero que você fique bem.
Ela beija o rosto dele, atravessa a rua correndo e entra num ônibus que estava prestes a sair. Murilo não consegue se mover. Apenas acompanha a corrida dela e depois o ônibus se afastando. O calor do rosto e o hálito dela tão próximos não contribuem em nada para que ele fique bem.
– Michelle!
Ela parou de escrever e ergueu os olhos, curiosa.
– Oi?
– Seu nome é Michelle, não é?
– É, mas eu não lembro de te conhecer.
– Provavelmente não, mas eu te conheço há vinte anos.
– ???
– Nossa, vai ser mais difícil do que eu pensei. Não sei nem por onde começar.
– Que tal mostrando a carteirinha de maluco?. Eu tenho dezessete anos.
– Olha, pode parecer absurdo… Na verdade, é absurdo, mas eu preciso que você escute essa história,
por mais doida que ela possa parecer.
– Mas primeiro me diga porquê que eu tenho que ouvir essa tal história e… Caramba! Você é o cara do metrô que ficou me olhando esquisito!
Murilo se perdeu um pouco, procurando entender do que ela estava falando e quando viu, pensou em como sua cara deve ter parecido estranha.
– É, eu devia estar com cara de idiota. Mas foi o choque de te reconhecer. É por isso que eu tenho que te contar. Você faz parte dela. E me desculpe se te assustei.
– Tudo bem. Eu escuto bobagem toda hora por causa do uniforme. Já nem sinto tanta raiva desses doentes que ficam babando quando a gente passa…
– Mas eu não sou um desses babões. Talvez, daqui a uns vinte ou trinta anos?!
Murilo só reparou que ela estava com a roupa daquele dia, quando ela falou.
– Foi a primeira coisa que eu pensei. Mas, o estranho foi que tive a sensação de te conhecer e saber que não era isso – ela sentiu um arrepio na nuca – e mais estranho ainda é que essa impressão continua, mesmo nem sabendo o seu nome.
– Murilo – ele inclina um pouco o corpo sobre a mesa que os separa, estendendo a mão pra ela. Os dois acham o toque agradável.
- E agora que conseguiu me deixar curiosa, me diga o quê é que está acontecendo.
- Tá, mas acho que seria melhor em outro lugar ou vão acabar nos expulsando daqui. Você gosta de café?
Michelle pensa um pouco, fecha o livro e o caderno e diz:
- É, um café cai bem. E num lugar público não tem perigo do seu lado babão se manifestar.
Os dois começam a rir e ouvem o tradicional “shiiiii” pedindo silêncio. Saem pra rua e a chuva havia parado, mas as ruas estão tranquilas por causa do frio. Michelle desvia das poças na calçada e Murilo não desvia os olhos do rosto dela. Murilo tinha um sorriso bobo no rosto, sentindo um misto de euforia, agitação e alegria que não lembrava como era, há muito tempo. Michelle estava séria e curiosa pra saber o que aquele estranho teria de tão interessante pra falar, pois aquela sensação do metrô persistia e mesmo sem saber o que era, sabia que era algo sério. Ao menos pra ele.
– Você não é daqui do Rio, é? – ele perguntou.
– Não. Sou de Goiás.
– Nossa. Um bocado longe.
– É, um pouco.
– É aqui – a mão de Murilo toca levemente nas costas dela, puxando-a para seu lado.
Ele se adianta, abre a porta para ela e entram no que parecia um bistrô. O lugar é elegante e aconchegante. Apenas um sujeito distraído com um jornal, ocupa uma das pequenas mesas. Eles seguem até o fundo e Murilo puxa a cadeira para Michelle sentar. Um garçon se aproxima, lhes entrega o cardápio enquanto deseja um bom dia e se afasta. Michelle olha a decoração em volta e diz:
– Bem bacana isso aqui.
– É, eu gosto. O quê você sugere?
Ela pega o cardápio e não se demora olhando a lista.
–Vou querer Alpino, e você… Tem cara de gostar do tradicional: Expresso – ele confirma com a cabeça e um sorriso – mas eu sugiro o Cappucino Taça.
Ela gosta do ar de surpresa e satisfação no rosto dele, que chama o garçon e faz o pedido.
– Então, por que não começa? – com os cotovelos na mesa, Michelle cruza os dedos das mãos e apóia o queixo.
– O problema é que não sei por onde. É difícil acreditar que você esteja aqui na minha frente.
– Ok, vou tentar facilitar. Você mora aonde?
Em Botafogo. E você, é no Flamengo?
– É. E faz o quê da vida?
– Trabalho com publicidade. E você, vai ser professora?
– Espero que sim.
O garçon chega com uma enorme bandeja e coloca as xícaras fumegantes em frente aos dois. Ela sopra um pouco antes do primeiro gole. Murilo parece mais relaxado quando ela diz:
– Bom, que tal acabar com esse mistério e me dizer o que está acontecendo?
– Então aconteceu assim, de repente…
E não demorou mais que meia hora. Murilo estava elétrico. Contou todo a história, algumas lembranças da adolescência, o dia no metrô e os seguintes, até o primeiro e o segundo e atual encontro na Biblioteca. Em nenhum momento ela o interrompeu. Em algumas partes, ela notou os olhos dele brilhar. Em algumas partes, sentiu o brilho do seu apagar. Principalmente, nas vezes em que um calafrio arrepiou seus braços e a nuca. E nas que ficou com a respiração suspensa, quase esquecendo de voltar a respirar.
– E então, isso não é muito mais doido do que qualquer coisa que você tenha pensado?
O olhar dela está distante. Ele nota, mas não sabe o que é. Ou prefere não saber.
– De longe, é a mais incrível que já me contaram. Nem tive tempo de pensar em muita coisa. E agora, até pensar está difícil. Acho que você devia aproveitar isso num livro ou filme. Até acredito que você sonhou ou viu isso tudo, mas eu não sei nem o quê dizer.
– Nunca acreditei nessa coisa de alma gêmea. Mas era o que dizia no livro. A primeira vez que te vi foi tão real quanto agora. E já tinha até me esquecido disso tudo até você aparecer de repente e o podia ser só um sonho antigo virou uma grande confusão na minha cabeça.
– Bem legal da sua parte vir confundir a minha também.
– Não foi intencional, mas eu tinha que te contar. Tem muito mais coisa além de tudo isso. Eu tenho namorada e gosto muito dela. Sorte que ela está viajando e só chega no fim do mês. E não dá pra falar algo assim por telefone, mas na verdade, acho que não vou falar nada. E você, tem namorado?
Meu Deus, você pode até ser casada?!
– Sim. Não! Não sou casada. Ainda. Tenho namorando e me caso em dezembro – ela ergue a mão direita e ele compreende que o que já tinha visto, não era um simples anel com um brilhante – e eu amo o André. E já está tudo pronto, até o vestido. Afinal é daqui a cinco meses…
O silêncio em que ficam é quase constrangedor.
– Provavelmente, não vou ser nem convidado, né?
– Seria esquisito te ver na igreja. E seria muito masoquismo ir ao casamento de alguém que você pensa ser sua alma gêmea. Acredita mesmo nisso?
– Não acreditava até você aparecer na minha frente. Não tem como saber se vou gostar de você por causa de uma experiência num livro, mas como definir a idéia de ter antes mesmo que você tivesse nascido? O seu rosto e seu cheiro ficaram gravados na minha memória. Tem falhas como o metrô, que não tem nada a ver com aquele descampado e o cabelo também é diferente, mas tem esse perfume… Mesmo que passe vinte, trinta anos, não vou esquecer nunca.
– É, ainda tem essa coisa de cheiro – ela ergue o braço, aproxima o nariz da axila e fala num tom de deboche – não acredito que seja falta de banho…
Murilo acha graça mas logo em seguida fica sério.
– Mesmo num labirinto com os olhos vendados, eu acharia você.
– Você me assusta com isso, sabia?
– E como você acha que eu estou? Pode ser que eu esteja me precipitando. Seria muito mais fácil me aproximar como um caça-modelos por exemplo, e te dar um cartão da agência, afinal você é linda e não seria nada absurdo. Mas você conseguiria pensar em algo assim, se tivesse acontecido contigo?
– Acho que não. Mas Murilo, eu tenho sonhos e projetos que não podem ser abandonados assim, de uma hora pra outra. Você também já deve ter os seus. Já disse que acredito na sua história, mas a questão é essa: É sua história. Se você não tem como saber se pode vir a gostar de mim, imagine eu que não passei por isso.
Ele paga os cafés e saem pra rua. Ficam parados embaixo da marquise, se protegendo da chuva fina que havia voltado.
– Então é isso! A gente se vê de novo?
– Você parece ser um cara bacana, mas depois de tudo você tentaria ser apenas um bom amigo?
– É, seria mesmo difícil.
– Desculpa, mas eu tenho que ir. Perdi completamente a noção da hora. Espero que você fique bem.
Ela beija o rosto dele, atravessa a rua correndo e entra num ônibus que estava prestes a sair. Murilo não consegue se mover. Apenas acompanha a corrida dela e depois o ônibus se afastando. O calor do rosto e o hálito dela tão próximos não contribuem em nada para que ele fique bem.
Duas semanas depois, Murilo está parado em frente à Biblioteca Nacional. Quando decide entrar, Michelle aparece na porta. A expressão de surpresa logo dá lugar a um lindo sorriso.
– Oi!
– Oi. Que bom te encontrar. A gente pode conversar?
– Tá, mas está tudo bem?
– Sim e não. Mas e você, ainda vai se casar?
– Vou. Olha só, eu tenho que ir pra casa e parece que essa conversa vai ser longa. A gente pode ir andando pela praia.
– Legal. Mas só se eu levar os seus cadernos.
Os dois caminham lado a lado. Michelle está curiosa:
– Mas então, porque disse sim e não ainda agora?
– Sim porque eu acreditava que ía te encontrar aqui e porque fui promovido a chefiar a agência em São Paulo. O não é óbvio, porque provavelmente não vou mais te ver. E porque tinha alguma esperança de que, de repente, tivesse desistido de casar…
Ele fala num tom descontraído, brincando. Mas ela percebe que tem um fundo de seriedade.
– Nossa! Que legal isso. Tá vendo como as coisas podem não ser nada daquilo que você pensava?
Está tudo indo tão bem.
– E sua namorada, já voltou?
– Já. Ela vai comigo. É ótima jornalista e arrumará algo bem rápido. Ah, e tem outra novidade: gostei daquela sua idéia do livro e comecei a escrever algo sobre essa maluquice toda.
Michelle pára. Aquilo foi mais surpreendente ainda.
– Ai meu Deus, que legal! Qual o título?
– Ainda estou em dúvida, mas o provisório é: A Metade do Sonho.
– Hummm, parece bom. Explica o quê é?
– É você?! Sobre essa confusão toda. Sem saber se foi uma alucinação, ilusão ou um sonho. Dae que se você é minha alma gêmea, a outra metade, me veio essa idéia. Você é a metade do sonho. E como vou trocar os nomes pra evitar processo, indenização, essas coisas, gostaria de sugerir algum pra personagem principal?
– Ah, não sei. Eu gosto do meu nome, mas se for o caso, que tal Fabianna?
– Ok, anotado.
– Mas tem que ser com dois enes, hein?! Porque Michelle tem dois eles e assim vou saber que sou eu mesmo…
– Só não acredito que alguém publique, dae que vai ser bem difícil você ler alguma coisa. Engraçado é que nunca pensei em escrever nada, mas as idéias estão vindo tão rápido… E mesmo que não seja, tem sido como uma espécie de terapia. E melhor porque economizo analista e tento entender um pouco disso tudo.
– Tenho certeza que vai ser um sucesso. E como você trabalha com publicidade e foi promovido é porque tem boas idéias e é competente. Ótimas ferramentas pra qualquer escritor. Nossa, fiquei curiosa pra saber como vai ser.
Murilo caminha pensativo, olhando pro mar. As poucas pessoas na areia aproveitam o calor, depois de mais de uma semana de frio e chuva. Mudanças comuns no louco tempo carioca. Mas só aproveitam o calor, já que um mergulho na água não é muito aconselhável.
– Mas era pra ser escrita por nós dois. Vou tentar não tocar mais no assunto. Então fale de você, vem sempre na BN?
– Ah, mas lá é lindo, não é? Adoro aquele silêncio. E os livros. Meus pais se separaram e tive que vir com minha mãe pro Rio. Só pensava em me formar e voltar pra casa. Adoro aquele lugar e ía dar aula pras crianças. E pros adultos, já que poucos sabiam apenas escrever o nome. E como te disse, as coisas mudam. Não vê? Conheci o André e tive que fazer outros planos. Acho que não volto mais pra lá, mas ainda quero dar aula.
Ela indica que já era hora de atravessar a pista de novo. Caminham em silêncio por um bom tempo e se entram nas ruas cercadas de prédios. Murilo pensa que já deve estar perto e é melhor falar antes de chegarem onde ela mora. Ele pára e a segura pelo braço. Os dois ficam bem próximos:
– Posso te pedir uma última coisa?
– Pode. Mas vê lá o que vai ser, hein?!
– Nah é bobagem, mas preciso muito saber… – ele não completa a frase. Sem dar tempo para Michelle reagir, avança e cola sua boca na dela, que se assusta, mas depois relaxa e se entrega. O beijo é bom. Longo. Molhado. Quando se afastam, parece que não é bem isso que querem. Murilo fica atordoado e eufórico. Michelle fica atordoada e envergonhada olhando pra calçada, sem coragem de encará-lo. Ele toca no queixo dela e com uma leve pressão levanta a cabeça dela e diz:
– Desculpa, mas eu precisava saber como era. E talvez, guardar guardar comigo pra sempre.
– Não, tudo bem. Mas você não podia ter feito isso. Mas o quê que foi isso? Minhas pernas estão bambas, mas deve ser por causa do susto. Meu prédio é aquele ali – ela aponta.
Eles param na entrada do prédio. Michelle parece desorientada. Murilo entende e acha que não dá pra prolongar mais aquela situação:
– Então Michelle, boa sorte pra você. Em tudo.
– Ai, pra você também. Tenho certeza que vai dar tudo certo. Pra nós dois.
Quando ele se aproxima para beijá-la no rosto, ela se assusta e dá um passo pra trás. Num gesto, ele diz que está tudo bem e estende a mão para ela. Ela logo estende a sua. Ele beija as costas na mão dela, depois quase cola o nariz na pele dela e começa a cheirá-la. Ela acha aquilo esquisito e quando ele já avançava e subia pelo braço, ela lembra que estão na portaria do seu prédio e se afasta um pouco. Ele sabe que é hora de ir embora:
– Então, foi um prazer te conhecer pessoalmente. Vejamos onde isso tudo vai dar.
Ele se vira e sente a mão dela segurar seu braço.
– Murilo, espero que você tenha entendido a situação. Eu penso que na possibilidade de que, se existir mesmo, isso de almas gêmeas e elas se encontrarem, não exista uma regra, dizendo que vão ficar juntas. Pode ser que você seja o cara certo, mas apareceu na hora errada. A gente não pode se basear naquela experiência doida. Não tem como saber se ía dar certo. A gente nem se conhece.
Ele a olha nos olhos e fala tão baixo, que ela tem que assimilar o movimento dos lábios com o som diminuto:
– Eu te conheço há mais de vinte anos… Adeus.
A mão dela desliza pelo braço, toca na mão dele e o último contato é dos dedos se separando. Ela fica parada na calçada olhando ele seguir o caminho que vieram. Ele não olha pra trás. Quando dobra a esquina, ela resolve entrar no prédio.
– Oi!
– Oi. Que bom te encontrar. A gente pode conversar?
– Tá, mas está tudo bem?
– Sim e não. Mas e você, ainda vai se casar?
– Vou. Olha só, eu tenho que ir pra casa e parece que essa conversa vai ser longa. A gente pode ir andando pela praia.
– Legal. Mas só se eu levar os seus cadernos.
Os dois caminham lado a lado. Michelle está curiosa:
– Mas então, porque disse sim e não ainda agora?
– Sim porque eu acreditava que ía te encontrar aqui e porque fui promovido a chefiar a agência em São Paulo. O não é óbvio, porque provavelmente não vou mais te ver. E porque tinha alguma esperança de que, de repente, tivesse desistido de casar…
Ele fala num tom descontraído, brincando. Mas ela percebe que tem um fundo de seriedade.
– Nossa! Que legal isso. Tá vendo como as coisas podem não ser nada daquilo que você pensava?
Está tudo indo tão bem.
– E sua namorada, já voltou?
– Já. Ela vai comigo. É ótima jornalista e arrumará algo bem rápido. Ah, e tem outra novidade: gostei daquela sua idéia do livro e comecei a escrever algo sobre essa maluquice toda.
Michelle pára. Aquilo foi mais surpreendente ainda.
– Ai meu Deus, que legal! Qual o título?
– Ainda estou em dúvida, mas o provisório é: A Metade do Sonho.
– Hummm, parece bom. Explica o quê é?
– É você?! Sobre essa confusão toda. Sem saber se foi uma alucinação, ilusão ou um sonho. Dae que se você é minha alma gêmea, a outra metade, me veio essa idéia. Você é a metade do sonho. E como vou trocar os nomes pra evitar processo, indenização, essas coisas, gostaria de sugerir algum pra personagem principal?
– Ah, não sei. Eu gosto do meu nome, mas se for o caso, que tal Fabianna?
– Ok, anotado.
– Mas tem que ser com dois enes, hein?! Porque Michelle tem dois eles e assim vou saber que sou eu mesmo…
– Só não acredito que alguém publique, dae que vai ser bem difícil você ler alguma coisa. Engraçado é que nunca pensei em escrever nada, mas as idéias estão vindo tão rápido… E mesmo que não seja, tem sido como uma espécie de terapia. E melhor porque economizo analista e tento entender um pouco disso tudo.
– Tenho certeza que vai ser um sucesso. E como você trabalha com publicidade e foi promovido é porque tem boas idéias e é competente. Ótimas ferramentas pra qualquer escritor. Nossa, fiquei curiosa pra saber como vai ser.
Murilo caminha pensativo, olhando pro mar. As poucas pessoas na areia aproveitam o calor, depois de mais de uma semana de frio e chuva. Mudanças comuns no louco tempo carioca. Mas só aproveitam o calor, já que um mergulho na água não é muito aconselhável.
– Mas era pra ser escrita por nós dois. Vou tentar não tocar mais no assunto. Então fale de você, vem sempre na BN?
– Ah, mas lá é lindo, não é? Adoro aquele silêncio. E os livros. Meus pais se separaram e tive que vir com minha mãe pro Rio. Só pensava em me formar e voltar pra casa. Adoro aquele lugar e ía dar aula pras crianças. E pros adultos, já que poucos sabiam apenas escrever o nome. E como te disse, as coisas mudam. Não vê? Conheci o André e tive que fazer outros planos. Acho que não volto mais pra lá, mas ainda quero dar aula.
Ela indica que já era hora de atravessar a pista de novo. Caminham em silêncio por um bom tempo e se entram nas ruas cercadas de prédios. Murilo pensa que já deve estar perto e é melhor falar antes de chegarem onde ela mora. Ele pára e a segura pelo braço. Os dois ficam bem próximos:
– Posso te pedir uma última coisa?
– Pode. Mas vê lá o que vai ser, hein?!
– Nah é bobagem, mas preciso muito saber… – ele não completa a frase. Sem dar tempo para Michelle reagir, avança e cola sua boca na dela, que se assusta, mas depois relaxa e se entrega. O beijo é bom. Longo. Molhado. Quando se afastam, parece que não é bem isso que querem. Murilo fica atordoado e eufórico. Michelle fica atordoada e envergonhada olhando pra calçada, sem coragem de encará-lo. Ele toca no queixo dela e com uma leve pressão levanta a cabeça dela e diz:
– Desculpa, mas eu precisava saber como era. E talvez, guardar guardar comigo pra sempre.
– Não, tudo bem. Mas você não podia ter feito isso. Mas o quê que foi isso? Minhas pernas estão bambas, mas deve ser por causa do susto. Meu prédio é aquele ali – ela aponta.
Eles param na entrada do prédio. Michelle parece desorientada. Murilo entende e acha que não dá pra prolongar mais aquela situação:
– Então Michelle, boa sorte pra você. Em tudo.
– Ai, pra você também. Tenho certeza que vai dar tudo certo. Pra nós dois.
Quando ele se aproxima para beijá-la no rosto, ela se assusta e dá um passo pra trás. Num gesto, ele diz que está tudo bem e estende a mão para ela. Ela logo estende a sua. Ele beija as costas na mão dela, depois quase cola o nariz na pele dela e começa a cheirá-la. Ela acha aquilo esquisito e quando ele já avançava e subia pelo braço, ela lembra que estão na portaria do seu prédio e se afasta um pouco. Ele sabe que é hora de ir embora:
– Então, foi um prazer te conhecer pessoalmente. Vejamos onde isso tudo vai dar.
Ele se vira e sente a mão dela segurar seu braço.
– Murilo, espero que você tenha entendido a situação. Eu penso que na possibilidade de que, se existir mesmo, isso de almas gêmeas e elas se encontrarem, não exista uma regra, dizendo que vão ficar juntas. Pode ser que você seja o cara certo, mas apareceu na hora errada. A gente não pode se basear naquela experiência doida. Não tem como saber se ía dar certo. A gente nem se conhece.
Ele a olha nos olhos e fala tão baixo, que ela tem que assimilar o movimento dos lábios com o som diminuto:
– Eu te conheço há mais de vinte anos… Adeus.
A mão dela desliza pelo braço, toca na mão dele e o último contato é dos dedos se separando. Ela fica parada na calçada olhando ele seguir o caminho que vieram. Ele não olha pra trás. Quando dobra a esquina, ela resolve entrar no prédio.
Dez anos depois…
Murilo caminha descalço pelas ruas “calombadas” e históricas de Parati. Andou até chegar à beira-mar. O lugar estava vazio e tranquilo. Veio para o lançamento de seu quinto livro na Flip e decidiu ficar mais uma semana. Achou que merecia umas férias. Há seis anos largou a agência em São Paulo e foi morar na Espanha. Já podia viver como escritor. Está no terceiro casamento. Tanto a atual quanto as duas primeiras esposas eram bem morenas com cabelos pretos e encaracolados. Pareciam um pouco com Michelle, mas nenhuma tinha o seu cheiro. Sentou no muro que faz a contenção do mar e ficou um bom tempo olhando pro vazio. A mente também estava vazia. De repente, sentiu aquele perfume e teve que se equilibrar pra não cair do muro na água, ao procurar Michelle. Nada! Mas de um modo estranho, sabe que ela está pensando nele.
Murilo caminha descalço pelas ruas “calombadas” e históricas de Parati. Andou até chegar à beira-mar. O lugar estava vazio e tranquilo. Veio para o lançamento de seu quinto livro na Flip e decidiu ficar mais uma semana. Achou que merecia umas férias. Há seis anos largou a agência em São Paulo e foi morar na Espanha. Já podia viver como escritor. Está no terceiro casamento. Tanto a atual quanto as duas primeiras esposas eram bem morenas com cabelos pretos e encaracolados. Pareciam um pouco com Michelle, mas nenhuma tinha o seu cheiro. Sentou no muro que faz a contenção do mar e ficou um bom tempo olhando pro vazio. A mente também estava vazia. De repente, sentiu aquele perfume e teve que se equilibrar pra não cair do muro na água, ao procurar Michelle. Nada! Mas de um modo estranho, sabe que ela está pensando nele.
Michelle viu seus planos e sonhos irem por água abaixo quando faltava um mês para o casamento e seu noivo André, foi morto num assalto. Ela ficou em choque por quase dois meses. Aos poucos as coisas foram se ajeitando, e a vida seguiu. Numa tarde que saía da Biblioteca Nacional, lembrou de Murilo e sua história alucinada. Ficou curiosa em saber como estavam as coisas. E quando pensou que podia estar com saudades daquele beijo, afastou logo o pensamento. Quando se formou, voltou para pra casa, em Alto Paraíso. Não para dar as aulas que tanto queria, mas para cuidar do pai, que havia sofrido um derrame e passava o tempo todo na cama. Ela até tentou voltar à normalidade e namorou alguns sujeitos. Mas logo perdia o interesse. E logo se desinteressou do assunto. “Seu” Júlio havia melhorado nos últimos três anos, e ela estava um pouco alegre, pois ganhou algum tempo livre e pode enfim, levar adiante a idéia de ser professora.
Sentada na escada da enorme varanda da casa, que é toda de madeira, tentava afastar os cabelos que tapavam sua visão. Desde que voltou, parou de fazer o “alisamento japonês” e com o tempo, seus cabelos lindos e lisos voltaram a crescer lindos e encaracolados. Prendeu num coque simples e charmoso. Voltou sua atenção pro livro que estava lendo pela quinta vez: A Metade do Sonho, de Murilo Martins. Sempre que lia o nome “Fabianna” acabava rindo sozinha. A do livro tinha quase todos os defeitos e qualidades dela. Tentava não pensar em como Murilo podia conhecê-la tão bem, já que se encontraram apenas duas vezes. Mas, o que mais mexia com ela, é que no livro o final era diferente. Fabianna arriscou e resolveu ficar com o mocinho da história. E foram felizes para sempre.
Sentada na escada da enorme varanda da casa, que é toda de madeira, tentava afastar os cabelos que tapavam sua visão. Desde que voltou, parou de fazer o “alisamento japonês” e com o tempo, seus cabelos lindos e lisos voltaram a crescer lindos e encaracolados. Prendeu num coque simples e charmoso. Voltou sua atenção pro livro que estava lendo pela quinta vez: A Metade do Sonho, de Murilo Martins. Sempre que lia o nome “Fabianna” acabava rindo sozinha. A do livro tinha quase todos os defeitos e qualidades dela. Tentava não pensar em como Murilo podia conhecê-la tão bem, já que se encontraram apenas duas vezes. Mas, o que mais mexia com ela, é que no livro o final era diferente. Fabianna arriscou e resolveu ficar com o mocinho da história. E foram felizes para sempre.
Michelle solta um longo suspiro, abraça os joelhos e esconde a cabeça. Sempre chora no final. Ela comprime a lingua no céu da boca e se assusta ao sentir o gosto de Murilo. Então ergue a cabeça e olha pro imenso descampado da Chapada dos Veadeiros. Nada! Mas de um modo estranho, sabe que ele está pensando nela. Quando volta a baixar os olhos, uma lágrima rola em seu rosto e cai na última palavra do livro:
F I M
® Postado no Blogo antigo em 17.07.2005
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